sábado, 20 de dezembro de 2008

A real fábula kafkaniana da barata e do amor, a aplicação prática das quatro incomensuráveis budistas

Quando completei 31 anos, no dia 26 de novembro de 2008, fiz votos de não matar, tampouco me nutrir de nenhum ser vivo com sistema cognitivo desenvolvido: passaria o dia mais vegetariano do que nunca, reforçando a escolha que fiz há quase 3 anos e que tenho ainda maculado com esporádicas aberturas para a ingestão de peixes e frutos-do-mar - fugindo-me à culpa pela frágil retórica de que são frutos e de que tanto biológica quanto zodiacalmente falando Peixes não sentem dor e são doadores, além da fecundação ser realizada de maneira externa e não se criarem cuidados parentais.


Então solicitei que minha mãe fizesse o macarrão ao funghi ao invés do macarrão ao camarão, bem como evitei os encontros no japonês e na temakeria.


Quando à noite tomava meu banho fui confrontado com uma situação kafkaniana: uma barata me observava audaciosamente perto de meus utensílios de higiene, tais como escova-de-dente, barbeador e demais apetrechos masculinos.


A primeira reação, por mais que tenha sido apenas um lampejo, foi a óbvia e habitual reação egóica de revolta por um bicho ligado comumente à sujeira estar perto de minha higiene pessoal.

Sentença: a m... não, peraí! Não poderia lhe desejar a morte. Não poderia esmagá-la assim, sem mais, nem menos. Havia feito votos de não matar seres em meu aniversário - ao menos não deliberadamente, pois andando na rua vitimizamos insetos suficientes para ainda o fazermos de maneira assim, cruelmente premeditada.


Contemplei. A barata. Meu voto. A situação.


Constatei que não havia diferença entre a barata e o camarão - inclusive são iguarias igualmente apreciadas em certos recantos do mundo.

Constatei ainda que o revisteiro abaixo da pia estava com jornais velhos, bagunçado e servia de refúgio para seres como aquela barata que tanto me fazia confrontar com velhos hábitos: não optamos todos pela saída mais cômoda, por permanecermos em nossa zona de conforto?


Tentei tirá-la, mas na primeira tentativa ela caprichosamente correu para debaixo e para dentro do tal revisteiro, que na verdade havia percebido somente naquele momento de sua fuga.

O pensamento de 'f.d.p., olha a trabalheira que está me dando' rápida, gentil e compassivamente cedeu vez para um agradecimento genuíno pela possibilidade e incentivo para organizar e limpar o revisteiro; basta mudarmos nossos paradigmas e tentar enxergar por uma ótica amorosa, de eterno aprendizado e benefício contínuo.


Dito e feito. Foi tirar o último exemplar que ela apareceu e ficou imóvel. Levei o revisteiro até a janela. Bati forte e ela caiu para fora. Mas não é que a danada voltou e parou me encarando?


Retribui o olhar, dizendo a ela que ela estava indo para o lado errado, que desse meia volta e fosse para fora. Prontamente ela se virou e seguiu seu caminho para o mundo, como se tendo apenas voltado para agradecer.


Ao retirar o revisteiro, devo ter batido no cifão da pia, pois pela manhã havia uma mancha na bolsa de minha máquina de raspar cabelo. O formato, imaginem: um perfeito coração.





Incrível do que a força do amor e da compaixão são capazes, não?

Depois disso fui visitado mais uma vez por uma barata que foi facilmente conduzida para fora sem retornar.

Adendo: minha relação com os mosquitos segue o mesmo caminho. Não os mato mais há um bom tempo, mas combato sim os possíveis focos de surgimento. Ah sim, não costumo ter uma mordida de mosquito!

Moral da história

Através do amor podemos não apenas entender o outro, o diferente, como também respeitá-lo e respeitar nossa natureza, fazendo com que nossas ações sejam construtivas de fato e em todos os sentidos.

Atuando com amor, preservamos os espaços e melhoramos não apenas a vida alheia, mas principalmente a nossa vida. Passamos a condenar menos os outros e também menos a nós mesmos, nos ofertando a possibilidade e o espaço para transcendermos e, ao passar pela zona de conforto de maneira amorosa, organizar e limpar recantos de nosso ser que acumulavam poeira e ficavam à sombra de nosso brilho, por muito tirando-nos nossa leveza e alegria de viver.

Às vezes, algo aparentemente negativo pode ser trabalhado como suporte positivo, basta termos calma para não sermos reativos/raivosos a partir de nosso ego e sim agirmos amorosamente com a plenitude de nosso ser.

O importante é sempre questionarmos se não poderiamos fazer, mesmo e principalmente as coisas mais simples e banais, de maneira diferente. No mínimo, faz-se necessário pensar diferente e questionar nossa maneira de ver e lidar com o mundo - os atos serão conseqüência dessa reflexão.

A receita budista para cultivar o amor é se trabalhar a equanimidade, conquistada por sua vez pela renúncia ao dualismo e a diferenciação; pela intenção de praticar o bem e que todos sejam afortunados - bodhicitta; pela realização da vacuidade, de que todos os fenônemos são vazios de existência e sim determinados por sua posição no tempo, espaço e relação interdependente; e, por fim, da aceitação da inexistência de um Eu, que igualmente é dependente do tempo, espaço e de suas relações.

Assim se cultiva o amor, que leva à compaixão e, por fim, ao regozijo.

Quando se sente a felicidade verdadeira de ver um ser livre, mesmo que momentaneamente como no caso da barata, de vê-lo feliz e sentir-se feliz pelo outro, isto é o ápice de nossa existência e potencializa essa coordenada no tempo, espaço e relação/conhecimento que chamamos de Eu - uma parte ínfama da grande rede que é a vida.

Depois de experimentar o prazer que é sentir prazer pelo prazer do outro, passa-se a querer trabalhar incessantemente para que esta felicidade seja genuína e imutável, ou seja, que esse ser também se liberte - porque nesse momento, você já estará liberto, já terá despertado.

É o Amor que desperta, eterniza e faz esse pontinho brilhar.

Aproveito para agradecer ao monge Gabriel pelos preciosos ensinamentos sobre as quatro qualidades incomensuráveis.

No Amor,

Um comentário:

Conexões de Luz disse...

Klausi querido,
se antes eu já tinha sérios problemas de consciência para matar uma barata, agora então...muito bacana o teu relato.Beijos, Códia