sexta-feira, 29 de maio de 2015

O Amor de Søren, Friedrich e Arthur



Como me foi solicitado por uma amiga, registrarei no texto a seguir concordâncias e diferenças entre Kierkegaard, Nietzsche e Schopenhauer a partir de sua concepção de Amor e de como se apresenta sua filosofia.  

A abordagem adotada como caminho para minha narrativa se justifica por duas margens: por um lado, o Amor é tema de pesquisa deste que vos escreve e, portanto, digno de ser trazido ao diálogo que este texto empreende; por outro lado, filosofia é precisamente o amor à sabedoria, o que reforça a abordagem do amor e esclarece que é a partir do entendimento que o Amor busca, que se estabelece todo pensamento que busca ser sabedoria – é neste empreendimento que a sabedoria se afirma. 

Apresentarei cada um dos filósofos isoladamente, em ordem cronológica, introduzindo com a biografia e apresentando os principais temas e inspirações em tópicos e costurados com texto. Finalmente, pontuo os temas mencionados ressaltando pontos em comum e distinção de pontos de vista. 

Comecemos por Arthur Schopenhauer, um dos primeiros leitores de textos orientais, como os Upanishads. Como contemporâneo das primeiras traduções para o latim, foi o principal introdutor da filosofia oriental hindu e budista na metafísica europeia. Um bom exemplo deste diálogo está registrado na sua obra prima “O mundo como vontade e representação”. Nascido em Danzig, no dia 22 de fevereiro de 1788 e falecido em Frankfurt, 21 de setembro de 1860, Schopenhauer viveu 72 anos no entendimento que o amor seria uma cilada biológica e que somos perpassados por algo maior que nós, por uma Vontade que representamos individualmente. 

Bebe diretamente da fonte do idealismo transcendental, Kant, afirmando que todo o mundo é representação, um grande fenômeno da vontade noumênica, mas rompe com este no que tange ao alcance da coisa-em-si. Se para Kant o noumeno é impossível de se conhecer, para Schopenhauer, ao tomar consciência de si em nível radical, o homem se vivencia como um ser movido por aspirações e paixões, que constituem a unidade da vontade, compreendida como o princípio norteador da vida humana e que perpassa a todos, não tendo em si individualidade, que se encontra justamente nas representações. O impulso do desejo não se dá de forma consciente: ele, ao contrário, se desdobra desde o inorgânico até o homem, que deseja sua preservação. 

É o neocortex justificando moralmente os impulsos do sistema R, sendo mediado pelo cérebro mediano, onde se encontram as emoções, a estética humana, nosso ânimo. A consciência humana seria uma mera superfície, tendendo a encobrir, ao conferir causalidade a seus atos e ao próprio mundo, a irracionalidade inerente à vontade. Nietzsche dirá anos depois que “consciência é rede” e que o pensamento representa o que há de menor de todo processo mental, antecipando assim toda psicologia. 

Para Schopenhauer, parece que tudo se baseia em aceitar o sofrimento que a vontade traz ao buscar saciar-se com todas as representações, alimentando-se de ilusão, e buscar a cessação do sofrimento superando-se pela arte, pela moral enquanto superação do egoísmo através da compaixão e pela suspensão da vontade de viver, indo radicalmente além da individualidade, sendo a ascese entendida enquanto eudaimonia espiritual – conceitos trazidos do budismo.

Nascido em Søren Kierkegaard é o próximo. E o mais religioso dos três filósofos – o único teólogo. Nascido em Copenhague em 5 de maio de 1813 e falecido na mesma cidade em 11 de novembro de 1855, Kierkegaard, tem sua obra marcada por sua biografia. Como Fernando Pessoa, escreve por pseudônimos. E os coloca para refutar e gerar reflexão no diálogo, tal qual Platão o fez com Sócrates, deixando o leitor responsável por criar seu próprio entendimento, seu próprio Kierkegaard. 

Sobre o Amor, escreve a importante “As obras do Amor”, na qual afirma ser o amor o cumprimento pleno da lei, sendo esta uma multidão inesgotável de prescrições, forçando-nos a focar no que é decisivo: a exigência do Amor - que é dupla, exigência de interioridade, coerência/consistência, e exigência de perseverança/persistência. Interioridade para Kierkegaard consiste em amar a si mesmo sendo amar a Deus. Ou seja, a coerência é uma coerência alinhada a algo transcendente e que leva à superação da ilusão de si que é nossa manifestação no interior da temporalidade da eternidade, o que nos convida a repensar nossa noção de persistência perante a eternidade – ou, o eterno devir, como queiram. 

Tudo isto evidencia como a proximidade da cultura cristã trazida pelo pai influenciou sobremaneira sua filosofia, conhecida como existencialismo cristão – o que o coloca alinhado, mas ao mesmo tempo oposto a Nietzsche e seu proto-existencialismo e a Sartre e o existencialismo francês, ambos de abordagem ateísta.
Vós, soberana do meu coração, guardada na profundeza secreta do meu peito, na plenitude do meu pensamento, ali [...] divindade desconhecida! Ó, posso eu realmente acreditar nas palavras dos poetas, que quando se vê pela primeira vez o objeto do seu amor, imagina já tê-la visto há muito tempo, que todo o amor assim como todo o conhecimento é lembrança, que o amor tem também as suas profecias dentro do indivíduo. —Kierkegaard

Neste escrito motivado pelo amor por sua então noiva, Kierkegaard equipara o amor ao conhecimento sendo ambos lembrança. A plenitude do pensamento claramente é uma divindade desconhecida soberana do coração. Há de se estar entusiasmado, cheio de Deus para se pensar plenamente, pois o amor é a soma do mandamento, como Kierkegaard cita São Paulo, o que remete ao ânimo sublime que expande a razão à moral em Kant. 

Há uma lei como referência, um arquétipo a projetar a razão prática e a representação da lei enquanto um imperativo categórico, mas somente alcançaremos tal dimensão se o ânimo for elevado pelo sublime que gera respeito pela lei e se houver três postulados da razão: Deus, o mundo e a imortalidade da alma. Kierkegaard nem postula Deus, o toma pra si e o assume, mesmo em meio aos questionamentos. O mundo é a representação da ideia do Todo e atende Schopenhauer e Nietzsche se assim o quisermos. É na imortalidade da alma que podemos ler diferenças, já que em Schopenhauer a individualidade é uma ilusão, mas também caminhos de convergência: é a imortalidade da alma que garante em Kant o progresso contínuo. E é nela que também há um caminho para se pensar o eterno retorno.

Para encerrar, matando Deus e solando o espírito, Nietzsche. Nascido em Röcken, 15 de outubro de 1844 e falecido em Weimar, 25 de agosto de 1900, Nietzsche foi um errante. Sua filosofia representava sua mobilidade forçada pela busca por paisagens e climas que favorecessem sua saúde em franca debilitação após servir como voluntário e médico na guerra franco-prussiana. Se o abalo psicológico teve impacto na perda de voz não se pode afirmar, mas de certo é interessante que o proto-existencialista nos chegue fortemente como póstumo: como se a voz dele não fosse audível para a época e ecoasse somente hoje. 

Logo hoje, onde as pessoas o lêem como afirmação do ego, da individualidade, arvorando-se super-homens, quando na verdade ele propõe o além homem, o indivíduo que em si foi além do bem e do mal, superou-se e ao nada e, livre do ego e do não-ego, individuado poder-se-ia afirmar, afirma-se enquanto a sua vontade. Eis uma humanidade forte, de indivíduos que agregam valor com sua existência. Sua voz emerge tal qual o ego emerge [do] (in)consciente e se busca compreender, não é dado – é para heróis da tragédia, não para a mediocridade humana presente no drama das vítimas de si mesmo ou na comédia dos cheios de si. 

Em sua concepção de Amor Fati, a aceitação do destino para neste afirmar-se, Nietzsche introduz o conceito de eterno retorno, que em uma leitura particular se torna um operador lógico que conscientiza o querer para afirmar-se no instante: essa vida tornará a se repetir sempre e mais uma vez, portanto, me questiono se quero mesmo este momento, como ele é e como estou me exercendo. Esta reflexão leva a um poder de criação e afirmação de seus próprios valores, superando o niilismo, o nada que fica após a superação do dualismo do bem e do mal. Nietzsche nasce tal qual uma tragédia e tem seu crepúsculo com os ídolos que ele mesmo ajudou a matar, só para afirmar que Ecce Homo (eis o homem) capaz de amar seu destino.

Após analisar estes três autores, reforço meu entendimento de que precisamos aprender a amar, pois todo o restante nos será dado e fluirá pelo respeito na troca com o todo que nos cerca. Talvez falte-nos apenas, como diria Schiller, uma educação estética da humanidade, tema que perpassa a todos os três autores. A arte em Schopenhauer é uma bela representação que aproxima a vontade. Em Kierkegaard, a lei é o esboço do Amor, que a incorpora. Em Nietzsche, a arte transfigura a desordem do mundo em beleza e faz aceitável tudo aquilo que há de problemático e terrível na vida, é liberdade plena de afirmar sua vontade e criar seu valor. 

E quem sabe então, descobriremos que o sujeito racional kantiano é mais do que alcançam os entendimentos moralistas – e seus detratores – até então. Com uma vontade que é representada a partir de um imperativo que se dá, portanto, se cria enquanto valor a ser universalizado, baseia-se em um modelo, uma lei, que também se imagina e que em Kant está inscrita nas profundezas do coração da qual emana a intenção e, portanto, toda hierarquia do pensamento e que é impulsionada pelo ânimo sublime que (e)leva a razão à lei. 

Com esta leitura invertida de um Kant do devir, da passagem do puro para o prático e destes para o empírico-político, que estrutura criticamente a razão e a prática da razão para legar ao belo e ao sublime a faculdade do juízo, consegue-se ler a vontade e sua representação no mundo de Arthur, a relação amor-lei, o esboço de Soren e a afirmação da vontade enquanto poder da existência do Friedrich. Uma filosofia onde o sublime da lei, divina ou racional, cria uma moral que o belo que emerge da vontade busca afirmar. 

Enquanto a obra de Kierkegaard foca na prioridade da realidade humana concreta em relação ao pensamento abstrato, dando ênfase à importância da escolha e compromisso pessoal, na vertente psicológica explora as emoções e sentimentos dos indivíduos quando confrontados com as escolhas que a vida oferece. Schopenhauer crê na necessidade da aceitação enquanto entrega para superação do sofrimento. Nietzsche propõe a aceitação enquanto possibilidade de afirmação de seus valores, superando-se enquanto vontade, apropriando-se desta sem julgá-la boa ou má; no subtítulo de seu último texto publicado, afirma-se psicólogo. 

Cronologicamente, Arthur apresenta o amor enquanto um artefato biológico, um dispositivo de captura; Kierkegaard como um modelo divino de conhecimento, linguagem e estrutura de conexão e Nietzsche ora como armadilha para o conhecimento – ver as coisas como não são quando se está amando – ora como possibilidade para se criar seu valor na afirmação do devir.

Toda sabedoria parece basear-se portanto em esclarecer o Amor, pois o Amor ama a sabedoria por esta lhe fazer mais potente. E esta faz mais potente, porque se quer por inteiro e se afirma na sua vontade. 

E para esclarecer o Amor, deve-se perguntar: Que posso saber sobre este Amor? Que devo fazer para respeitar as partes e o acordo? Que me é dado esperar se eu amar e respeitar individual e coletivamente? O que eu sou e o que torno a humanidade ao agir desta maneira? Que valores represento? Quem/O que se afirma quando represento estes valores?

Múltiplas abordagens, uma questão: o ser e suas relações – para além da razão e das emoções.