Como me foi solicitado por uma amiga,
registrarei no texto a seguir concordâncias e diferenças entre Kierkegaard,
Nietzsche e Schopenhauer a partir de sua concepção de Amor e de como se
apresenta sua filosofia.
A abordagem
adotada como caminho para minha narrativa se justifica por duas margens: por um
lado, o Amor é tema de pesquisa deste que vos escreve e, portanto, digno de ser
trazido ao diálogo que este texto empreende; por outro lado, filosofia é
precisamente o amor à sabedoria, o que reforça a abordagem do amor e esclarece
que é a partir do entendimento que o Amor busca, que se estabelece todo
pensamento que busca ser sabedoria – é neste empreendimento que a sabedoria se
afirma.
Apresentarei cada um dos filósofos isoladamente, em ordem cronológica,
introduzindo com a biografia e apresentando os principais temas e inspirações
em tópicos e costurados com texto. Finalmente, pontuo os temas mencionados
ressaltando pontos em comum e distinção de pontos de vista.
Comecemos por Arthur
Schopenhauer, um dos primeiros leitores de textos orientais, como os
Upanishads. Como contemporâneo das primeiras traduções para o latim, foi o
principal introdutor da filosofia oriental hindu e budista na metafísica
europeia. Um bom exemplo deste diálogo está registrado na sua obra prima “O
mundo como vontade e representação”. Nascido em Danzig, no dia 22 de fevereiro
de 1788 e falecido em Frankfurt, 21 de setembro de 1860, Schopenhauer viveu 72
anos no entendimento que o amor seria uma cilada biológica e que somos
perpassados por algo maior que nós, por uma Vontade que representamos
individualmente.
Bebe diretamente da fonte do idealismo transcendental, Kant,
afirmando que todo o mundo é representação, um grande fenômeno da vontade
noumênica, mas rompe com este no que tange ao alcance da coisa-em-si. Se para
Kant o noumeno é impossível de se conhecer, para Schopenhauer, ao tomar
consciência de si em nível radical, o homem se vivencia como um ser movido por
aspirações e paixões, que constituem a unidade da vontade, compreendida como o
princípio norteador da vida humana e que perpassa a todos, não tendo em si
individualidade, que se encontra justamente nas representações. O impulso do
desejo não se dá de forma consciente: ele, ao contrário, se desdobra desde o
inorgânico até o homem, que deseja sua preservação.
É o neocortex justificando
moralmente os impulsos do sistema R, sendo mediado pelo cérebro mediano, onde
se encontram as emoções, a estética humana, nosso ânimo. A consciência humana
seria uma mera superfície, tendendo a encobrir, ao conferir causalidade a seus
atos e ao próprio mundo, a irracionalidade inerente à vontade. Nietzsche dirá
anos depois que “consciência é rede” e que o pensamento representa o que há de
menor de todo processo mental, antecipando assim toda psicologia.
Para
Schopenhauer, parece que tudo se baseia em aceitar o sofrimento que a vontade
traz ao buscar saciar-se com todas as representações, alimentando-se de ilusão,
e buscar a cessação do sofrimento superando-se pela arte, pela moral enquanto
superação do egoísmo através da compaixão e pela suspensão da vontade de viver,
indo radicalmente além da individualidade, sendo a ascese entendida enquanto
eudaimonia espiritual – conceitos trazidos do budismo.
Nascido em Søren Kierkegaard é o
próximo. E o mais religioso dos três filósofos – o único teólogo. Nascido em Copenhague
em 5 de maio de 1813 e falecido na mesma cidade em 11 de novembro de 1855,
Kierkegaard, tem sua obra marcada por sua biografia. Como Fernando Pessoa,
escreve por pseudônimos. E os coloca para refutar e gerar reflexão no diálogo,
tal qual Platão o fez com Sócrates, deixando o leitor responsável por criar seu
próprio entendimento, seu próprio Kierkegaard.
Sobre o Amor, escreve a
importante “As obras do Amor”, na qual afirma ser o amor o cumprimento pleno da
lei, sendo esta uma multidão inesgotável de prescrições, forçando-nos a focar
no que é decisivo: a exigência do Amor - que é dupla, exigência de
interioridade, coerência/consistência, e exigência de
perseverança/persistência. Interioridade para Kierkegaard consiste em amar a si
mesmo sendo amar a Deus. Ou seja, a coerência é uma coerência alinhada a algo
transcendente e que leva à superação da ilusão de si que é nossa manifestação
no interior da temporalidade da eternidade, o que nos convida a repensar nossa
noção de persistência perante a eternidade – ou, o eterno devir, como queiram.
Tudo isto evidencia como a proximidade da cultura cristã trazida pelo pai
influenciou sobremaneira sua filosofia, conhecida como existencialismo cristão
– o que o coloca alinhado, mas ao mesmo tempo oposto a Nietzsche e seu
proto-existencialismo e a Sartre e o existencialismo francês, ambos de abordagem
ateísta.
Vós, soberana
do meu coração, guardada na profundeza secreta do meu peito, na plenitude do
meu pensamento, ali [...] divindade desconhecida! Ó, posso eu realmente
acreditar nas palavras dos poetas, que quando se vê pela primeira vez o objeto
do seu amor, imagina já tê-la visto há muito tempo, que todo o amor assim como
todo o conhecimento é lembrança, que o amor tem também as suas profecias dentro
do indivíduo. —Kierkegaard
Neste escrito motivado pelo amor
por sua então noiva, Kierkegaard equipara o amor ao conhecimento sendo ambos
lembrança. A plenitude do pensamento claramente é uma divindade desconhecida
soberana do coração. Há de se estar entusiasmado, cheio de Deus para se pensar
plenamente, pois o amor é a soma do mandamento, como Kierkegaard cita São Paulo,
o que remete ao ânimo sublime que expande a razão à moral em Kant.
Há uma lei
como referência, um arquétipo a projetar a razão prática e a representação da
lei enquanto um imperativo categórico, mas somente alcançaremos tal dimensão se
o ânimo for elevado pelo sublime que gera respeito pela lei e se houver três
postulados da razão: Deus, o mundo e a imortalidade da alma. Kierkegaard nem
postula Deus, o toma pra si e o assume, mesmo em meio aos questionamentos. O
mundo é a representação da ideia do Todo e atende Schopenhauer e Nietzsche se
assim o quisermos. É na imortalidade da alma que podemos ler diferenças, já que
em Schopenhauer a individualidade é uma ilusão, mas também caminhos de
convergência: é a imortalidade da alma que garante em Kant o progresso
contínuo. E é nela que também há um caminho para se pensar o eterno retorno.
Para encerrar, matando Deus e
solando o espírito, Nietzsche. Nascido em Röcken, 15 de outubro de 1844 e
falecido em Weimar, 25 de agosto de 1900, Nietzsche foi um errante. Sua
filosofia representava sua mobilidade forçada pela busca por paisagens e climas
que favorecessem sua saúde em franca debilitação após servir como voluntário e
médico na guerra franco-prussiana. Se o abalo psicológico teve impacto na perda
de voz não se pode afirmar, mas de certo é interessante que o
proto-existencialista nos chegue fortemente como póstumo: como se a voz dele
não fosse audível para a época e ecoasse somente hoje.
Logo hoje, onde as
pessoas o lêem como afirmação do ego, da individualidade, arvorando-se
super-homens, quando na verdade ele propõe o além homem, o indivíduo que em si
foi além do bem e do mal, superou-se e ao nada e, livre do ego e do não-ego,
individuado poder-se-ia afirmar, afirma-se enquanto a sua vontade. Eis uma
humanidade forte, de indivíduos que agregam valor com sua existência. Sua voz
emerge tal qual o ego emerge [do] (in)consciente e se busca compreender, não é
dado – é para heróis da tragédia, não para a mediocridade humana presente no
drama das vítimas de si mesmo ou na comédia dos cheios de si.
Em sua concepção
de Amor Fati, a aceitação do destino para neste afirmar-se, Nietzsche introduz
o conceito de eterno retorno, que em uma leitura particular se torna um
operador lógico que conscientiza o querer para afirmar-se no instante: essa
vida tornará a se repetir sempre e mais uma vez, portanto, me questiono se
quero mesmo este momento, como ele é e como estou me exercendo. Esta reflexão
leva a um poder de criação e afirmação de seus próprios valores, superando o
niilismo, o nada que fica após a superação do dualismo do bem e do mal.
Nietzsche nasce tal qual uma tragédia e tem seu crepúsculo com os ídolos que
ele mesmo ajudou a matar, só para afirmar que Ecce Homo (eis o homem) capaz de
amar seu destino.
Após analisar estes três autores,
reforço meu entendimento de que precisamos aprender a amar, pois todo o
restante nos será dado e fluirá pelo respeito na troca com o todo que nos
cerca. Talvez falte-nos apenas, como diria Schiller, uma educação estética da
humanidade, tema que perpassa a todos os três autores. A arte em Schopenhauer é
uma bela representação que aproxima a vontade. Em Kierkegaard, a lei é o esboço
do Amor, que a incorpora. Em Nietzsche, a arte transfigura a desordem do mundo
em beleza e faz aceitável tudo aquilo que há de problemático e terrível na
vida, é liberdade plena de afirmar sua vontade e criar seu valor.
E quem sabe
então, descobriremos que o sujeito racional kantiano é mais do que alcançam os
entendimentos moralistas – e seus detratores – até então. Com uma vontade que é
representada a partir de um imperativo que se dá, portanto, se cria enquanto
valor a ser universalizado, baseia-se em um modelo, uma lei, que também se
imagina e que em Kant está inscrita nas profundezas do coração da qual emana a
intenção e, portanto, toda hierarquia do pensamento e que é impulsionada pelo
ânimo sublime que (e)leva a razão à lei.
Com esta leitura invertida de um Kant
do devir, da passagem do puro para o prático e destes para o empírico-político,
que estrutura criticamente a razão e a prática da razão para legar ao belo e ao
sublime a faculdade do juízo, consegue-se ler a vontade e sua representação no
mundo de Arthur, a relação amor-lei, o esboço de Soren e a afirmação da vontade
enquanto poder da existência do Friedrich. Uma filosofia onde o sublime da lei,
divina ou racional, cria uma moral que o belo que emerge da vontade busca
afirmar.
Enquanto a obra de Kierkegaard
foca na prioridade da realidade humana concreta em relação ao pensamento abstrato,
dando ênfase à importância da escolha e compromisso pessoal, na vertente
psicológica explora as emoções e sentimentos dos indivíduos quando confrontados
com as escolhas que a vida oferece. Schopenhauer crê na necessidade da
aceitação enquanto entrega para superação do sofrimento. Nietzsche propõe a
aceitação enquanto possibilidade de afirmação de seus valores, superando-se
enquanto vontade, apropriando-se desta sem julgá-la boa ou má; no subtítulo de
seu último texto publicado, afirma-se psicólogo.
Cronologicamente, Arthur
apresenta o amor enquanto um artefato biológico, um dispositivo de captura;
Kierkegaard como um modelo divino de conhecimento, linguagem e estrutura de
conexão e Nietzsche ora como armadilha para o conhecimento – ver as coisas como
não são quando se está amando – ora como possibilidade para se criar seu valor
na afirmação do devir.
Toda sabedoria parece basear-se
portanto em esclarecer o Amor, pois o Amor ama a sabedoria por esta lhe fazer
mais potente. E esta faz mais potente, porque se quer por inteiro e se afirma
na sua vontade.
E para esclarecer o Amor, deve-se perguntar: Que posso saber
sobre este Amor? Que devo fazer para respeitar as partes e o acordo? Que me é
dado esperar se eu amar e respeitar individual e coletivamente? O que eu sou e
o que torno a humanidade ao agir desta maneira? Que valores represento? Quem/O
que se afirma quando represento estes valores?
Múltiplas abordagens, uma questão: o ser e suas relações – para além da razão e
das emoções.